Em texto exclusivo para o 247, o escritor Fernando Morais narra como,
em meados do século passado, Assis Chateaubriand encomendou ao diretor
do Estado de Minas uma reportagem sobre o estupro supostamente cometido
pelo arcebispo de Belo Horizonte contra a própria irmã. Detalhe: Dom
Cabral não tinha irmã. Passadas oito décadas, Chatô exumou-se do
cemitério e encarnou nos blogueiros limpos e editores dos principais
jornais brasileiros
Por Fernando Morais
As agressões e infâmias dirigidas por alguns jornais, revistas, blogs e
telejornais ao ex-presidente Lula e ao ex-ministro José Dirceu me fazem
lembrar um episódio ocorrido em Belo Horizonte em meados do século
passado.
Todas as sextas-feiras o grande cronista Rubem Braga assinava uma coluna
no jornal “Estado de Minas”, o principal órgão dos Diários Associados
em Minas Gerais. Irreverente e anticlerical, certa vez Braga escreveu
uma crônica considerada desrespeitosa à figura de Nossa Senhora de
Lourdes, padroeira de Belo Horizonte. Herege, em si, aos olhos da
conservadora sociedade mineira o artigo adquiriu tons ainda mais
explosivos pela casualidade de ter sido publicado numa Sexta-Feira da
Paixão.
Indignado, o arcebispo metropolitano Dom Antonio dos Santos Cabral
redigiu uma dura homilia recomendando aos mineiros que deixassem de
assinar, comprar e sobretudo de ler o “Estado de Minas”. Dois dias
depois o documento foi lido na missa de domingo de todas as quinhentas e
tantas paróquias de Minas Gerais.
O míssil disparado pelo religioso jogou no chão a vendagem daquele que
era, até então, o mais prestigioso jornal do Estado. E logo repercutiu
no Rio de Janeiro. Mais precisamente na mesa do pequenino paraibano
Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, um império com rádios e
jornais espalhados por todos os cantos do Brasil.
Célebre pela fama de jamais engolir desaforos, o colérico Chateaubriand
telefonou para Geraldo Teixeira da Costa, diretor do “Estado de Minas”,
com uma ordem expressa, repleta de exclamações:
- Seu Gegê! Quero uma reportagem de página inteira contando que quando
jovem Dom Cabral estuprou a própria irmã! O senhor tem uma semana para
publicar isso!
Tamanha barbaridade não passaria pela cabeça de quem quer que conhecesse
o austero Dom Cabral, cujas virtudes haviam levado o Papa Pio XI a
agraciá-lo com o título de Conde. Mas ordens eram ordens.
Os dias se passavam e a reportagem não aparecia no jornal. Duas semanas
depois do ultimato, um Chateaubriand possuído pelo demônio ligou de novo
para Belo Horizonte:
- Seu Gegê! Seu Gegê! O senhor esqueceu quem é que manda nesta merda de
jornal? O senhor esqueceu quem é que paga seu salario, seu Gegê? Cadê a
reportagem sobre o estupro incestuoso cometido por Dom Cabral?
Do outro lado da linha, um pálido e tremebundo Gegê gaguejou:
- Doutor Assis, temos um problema. Descobrimos que Dom Cabral é filho
único, não tem e nunca teve irmãs...
Sapateando sobre o tapete, Chateaubriand parecia tomado por um surto
nervoso:
- TEMOS um problema? Seu Gegê, nós não temos problema algum! Isso é um
problema de Dom Cabral! Publique a reportagem! Cabe A ELE provar que não
tem irmãs, entendeu, seu Gegê? Vou repetir, seu Gegê: cabe A ELE provar
que não tem irmãs!!
Passadas oito décadas, suspeito que Chatô exumou-se do Cemitério do
Araçá e, de peixeira na cinta, encarnou nos blogueiros limpos e nos
editores dos principais jornais e revistas brasileiros.
Como no caso de Dom Cabral, cabe a Lula provar que não marchou com a
família e com Deus, em 1964, quando tinha 18 anos, pedindo aos militares
que derrubassem o governo do presidente João Goulart. Cabe a Dirceu
provar que não foi o chefe do chamado mensalão.
Fernando Morais é jornalista e escritor. É autor, entre outros
livros, de “Chatô, o rei do Brasil”, biografia de Assis Chateaubriand.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
se não tem nada a contribuir não escreva!