Cezar Britto sobre curso de Direito da Terra: a Justiça não deve ser um fenômeno urbano
28 de agosto de 2012
Por Mayrá Lima
Da Página do MST, sugerido pelo FrancoAtirador
Na última sexta-feira (24), os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF1) negaram, por unanimidade, a ação civil impetrada pelo Ministério Público de Goiás que pedia a extinção da turma de Direito Evandro Lins e Silva, formada por filhos e filhas de trabalhadores rurais, por considerar o curso de Direito fora da realidade rural.
Segundo o ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e advogado da turma, Cezar Britto, o Ministério Público Federal (MPF) já havia arquivado um inquérito civil de mesmo teor argumentativo, ao considerar que as turmas para trabalhadores rurais são de fundamental importância social e pública.
“Ao afirmar que quem mora no campo não tem direito a viver o direito, esqueceu-se o MPF de que o Poder Judiciário não é um prédio físico, localizado em alguma rua da cidade. Ao contrário, o conceito de Justiça é o de que deve se aplicar a todos: urbano ou rural, pobre ou rico, nascido em berço esplêndido ou numa pequena manjedoura”, disse.
A vitória da turma Evandro Lins e Silva abre precedente para outros cursos promovidos através do Programa Nacional de Educação do Campo (Pronera) e que estão sendo questionados pelo Poder Judiciário.
Para Britto, reconhecer a constitucionalidade dos convênios entre Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e as universidades é importante, mas a “a voz do campo será fundamental para a construção de um novo direito”.
Confira a entrevista do ex-presidente da OAB, Cezar Britto, concedida à Página do MST.
Em quais argumentos foi baseada a ação do Ministério Público Federal de Goiás?
A tese principal do Ministério Público Federal consistiu da afirmação de que a “flagrante inconstitucionalidade do convênio” celebrado entre a Universidade Federal de Goiás (UFG) e o Incra pelo fato de que a “fixação do homem no campo com condições de sobrevivência e desenvolvimento que valida a desapropriação e a transferência de terras aos assentados, e tal objetivo sequer tangencia com a formação técnico-jurídica que se pretende conferir aos assentados com a criação do curso de direito pelo INCRA/UFG”.
Nesta mesma linha de argumentação, o Ministério Público Federal, disse que “o habitat do profissional do direito, em qualquer das vertentes, é o meio urbano, pois é nesta localidade que se encontram os demais operadores jurídicos”.
Qual foi a linha da argumentação da defesa?
A defesa apresentou várias argumentações: a primeira decorria do fato de ter o magistrado reconhecido a “validade das atividades acadêmicas integralizadas pelo corpo discente”, bem assim o fato jurídico superveniente (a conclusão do curso e a consequente colação de grau) proteger a Turma Evandro Lins e Silva, quer seja pela coisa julgada, quer seja pela teoria do fato consumado a fazer perder o objeto da ação civil pública, porque não poderia a decisão prejudicar os bacharéis que, de boa-fé, concluíram o curso, quando não existe o verbo “desensinar”.
Outra linha de defesa foi a de que o processo estava nulo porque dele não foram citados os bacharéis, cuja decisão pela extinção da turma tinha reflexo direto nas suas vidas. Também se argumentou – e esta foi a decisão que se fez vencedora, não se analisando as demais — que o MPF local não poderia ter ajuizado a ação, porque o colegiado superior já mandara arquivar o inquérito civil público específico para esta turma especial de direito.
Neste caso, não se poderia falar em autonomia individual do membro do MPF, pois não havia vazio decisório na questão. O TRF1, por unanimidade, entendeu que o inquérito civil público por decisão colegiada superior se fez vinculante e extinguiu a ação.
Ao dizer que o curso de Direito não faz parte da realidade do meio rural, o Ministério Público de Goiás não estaria sendo preconceituoso?
Claro que sim. Ao afirmar que quem mora no campo não tem direito a viver o direito, esqueceu-se o MPF de que o Poder Judiciário não é um prédio físico, localizado em alguma rua da cidade. Ao contrário, o conceito de Justiça é o de que deve se aplicar a todos: urbano ou rural, pobre ou rico, nascido em berço esplêndido ou numa pequena manjedoura. A Justiça não pode, não deve ser apenas um fenômeno urbano, criando categorias distintas de cidadãos brasileiros: os que têm Justiça e os que sequer podem viver com ela.
O Brasil não vive “O Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, divididos em castas, criadas em laboratórios ou condicionadas no avançar do tempo, como alfas; betas; gamas; deltas e ipsilons. No Brasil, a educação é forma de inclusão, de combate à desigualdade, de afirmação da pessoa humana como razão de ser do Estado.
Quais os próximos passos? Há risco de outras ações?
Agora é aguardar a publicação da decisão que, em tese, ainda cabe recurso. Mas é importante lembrar que, caso vitorioso o MPF em seu recurso, o processo teria que ser julgado nas demais matérias, inclusive no seu preconceituoso mérito. O importante é saber que a turma Evandro Lins e Silva pode seguir adiante no seu trabalho, pois ela é melhor garantia de que o habitat do campo será abrigo seguro para o campo do direito, pois os seus filhos serão os advogados, magistrados e promotores e advogados, não precisando daqueles que nasceram na cidade para que lhes defenda nos tribunais, como ocorrera neste caso.
Qual a importância do PRONERA no combate às desigualdades na educação rural?
Fora exatamente para permitir a sobrevivência com dignidade da pessoa humana que mora no campo e o desenvolvimento sustentável de sua importante atividade é que fora criado o PRONERA e a turma especial de direito. E fixar o homem no campo é dar-lhe a certeza da segurança, da sobrevivência decente, da igualdade de tratamento, da liberdade de ir e vir não são sementes a serem jogadas em sólido árido.
É reconhecer o seu direito à moradia, princípio fundamental, não se aceitando a lógica de que mais de seiscentas mil famílias rurais moram em casa de taipa, quando não em barracas de lona ou em senzalas nas fazendas que ainda se utilizam do trabalho escravo.
É lhe garantir que o simples e necessário direito de beber água potável não está condicionando à vontade de um chefe político de plantão, que escolhe que o local em que o carro-pipa vai passar. É aplicar-lhe o constitucional direito à saúde, esta não mais conceituada com o ato de implorar o envio de uma ambulância que o levará o doente a um abarrotado hospital da cidade grande.
É fazer real o direito à educação, como dever do estado, não mais se admitindo que 40% dos trabalhadores rurais são analfabetos ou que mais de três milhões de crianças e adolescentes estão fora escola.
É saber que o seu pedaço de terra lhe permitirá o seu sustento e o de sua família, que o fruto do seu trabalho será comercializado a preço justo, é conhecer o conceito de arrendamento, de contrato de compra e venda da safra, de seguro para proteger a produção, evitando, assim, os atravessadores ou aqueles que buscam o lucro fácil sem o suor do labor.
É ser conhecedor dos direitos trabalhistas dos empregados rurais, da importância da carteira assinada, do direito à aposentadoria quando corpo cansar do sol e da chuva que lhe castiga a alma.
É conhecer dos créditos rurais, saber identificar os juros extorsivos e, se o tempo não ajudar na colheita, renegociar dignamente o contrato, para que não lhes levem os anéis e os dedos.
É conhecer do direito ambiental, das licenças ambientais, dos crimes ambientais, do crédito de carbono, para melhorar o seu desempenho e, com ele, o planeta.
É saber do direito de propriedade, do valor jurídico da posse, da legislação aplicável aos beneficiários da Reforma Agrária e, sobretudo, das formas legais e técnicas de solução dos conflitos agrários.
É fazer com que, como ensinou Dom Helder Câmara, as leis deixem o papel para ganhar as ruas e, sobretudo, o campo.
Esta vitória abre precedente para outros cursos que também estão sendo questionados?
Não tenho dúvida, pois a decisão do MPF que restara como última palavra a ser seguida é aquela que reconhece a constitucionalidade do convênio assinado pela UFG e o INCRA. Espero que ela seja multiplicada noutras turmas. A voz do campo será fundamental para a construção de um novo direito, especialmente quando questionar o patrimonialismo plantado no Brasil desde o descobrimento.
28 de agosto de 2012
Por Mayrá Lima
Da Página do MST, sugerido pelo FrancoAtirador
Na última sexta-feira (24), os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF1) negaram, por unanimidade, a ação civil impetrada pelo Ministério Público de Goiás que pedia a extinção da turma de Direito Evandro Lins e Silva, formada por filhos e filhas de trabalhadores rurais, por considerar o curso de Direito fora da realidade rural.
Segundo o ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e advogado da turma, Cezar Britto, o Ministério Público Federal (MPF) já havia arquivado um inquérito civil de mesmo teor argumentativo, ao considerar que as turmas para trabalhadores rurais são de fundamental importância social e pública.
“Ao afirmar que quem mora no campo não tem direito a viver o direito, esqueceu-se o MPF de que o Poder Judiciário não é um prédio físico, localizado em alguma rua da cidade. Ao contrário, o conceito de Justiça é o de que deve se aplicar a todos: urbano ou rural, pobre ou rico, nascido em berço esplêndido ou numa pequena manjedoura”, disse.
A vitória da turma Evandro Lins e Silva abre precedente para outros cursos promovidos através do Programa Nacional de Educação do Campo (Pronera) e que estão sendo questionados pelo Poder Judiciário.
Para Britto, reconhecer a constitucionalidade dos convênios entre Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e as universidades é importante, mas a “a voz do campo será fundamental para a construção de um novo direito”.
Confira a entrevista do ex-presidente da OAB, Cezar Britto, concedida à Página do MST.
Em quais argumentos foi baseada a ação do Ministério Público Federal de Goiás?
A tese principal do Ministério Público Federal consistiu da afirmação de que a “flagrante inconstitucionalidade do convênio” celebrado entre a Universidade Federal de Goiás (UFG) e o Incra pelo fato de que a “fixação do homem no campo com condições de sobrevivência e desenvolvimento que valida a desapropriação e a transferência de terras aos assentados, e tal objetivo sequer tangencia com a formação técnico-jurídica que se pretende conferir aos assentados com a criação do curso de direito pelo INCRA/UFG”.
Nesta mesma linha de argumentação, o Ministério Público Federal, disse que “o habitat do profissional do direito, em qualquer das vertentes, é o meio urbano, pois é nesta localidade que se encontram os demais operadores jurídicos”.
Qual foi a linha da argumentação da defesa?
A defesa apresentou várias argumentações: a primeira decorria do fato de ter o magistrado reconhecido a “validade das atividades acadêmicas integralizadas pelo corpo discente”, bem assim o fato jurídico superveniente (a conclusão do curso e a consequente colação de grau) proteger a Turma Evandro Lins e Silva, quer seja pela coisa julgada, quer seja pela teoria do fato consumado a fazer perder o objeto da ação civil pública, porque não poderia a decisão prejudicar os bacharéis que, de boa-fé, concluíram o curso, quando não existe o verbo “desensinar”.
Outra linha de defesa foi a de que o processo estava nulo porque dele não foram citados os bacharéis, cuja decisão pela extinção da turma tinha reflexo direto nas suas vidas. Também se argumentou – e esta foi a decisão que se fez vencedora, não se analisando as demais — que o MPF local não poderia ter ajuizado a ação, porque o colegiado superior já mandara arquivar o inquérito civil público específico para esta turma especial de direito.
Neste caso, não se poderia falar em autonomia individual do membro do MPF, pois não havia vazio decisório na questão. O TRF1, por unanimidade, entendeu que o inquérito civil público por decisão colegiada superior se fez vinculante e extinguiu a ação.
Ao dizer que o curso de Direito não faz parte da realidade do meio rural, o Ministério Público de Goiás não estaria sendo preconceituoso?
Claro que sim. Ao afirmar que quem mora no campo não tem direito a viver o direito, esqueceu-se o MPF de que o Poder Judiciário não é um prédio físico, localizado em alguma rua da cidade. Ao contrário, o conceito de Justiça é o de que deve se aplicar a todos: urbano ou rural, pobre ou rico, nascido em berço esplêndido ou numa pequena manjedoura. A Justiça não pode, não deve ser apenas um fenômeno urbano, criando categorias distintas de cidadãos brasileiros: os que têm Justiça e os que sequer podem viver com ela.
O Brasil não vive “O Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, divididos em castas, criadas em laboratórios ou condicionadas no avançar do tempo, como alfas; betas; gamas; deltas e ipsilons. No Brasil, a educação é forma de inclusão, de combate à desigualdade, de afirmação da pessoa humana como razão de ser do Estado.
Quais os próximos passos? Há risco de outras ações?
Agora é aguardar a publicação da decisão que, em tese, ainda cabe recurso. Mas é importante lembrar que, caso vitorioso o MPF em seu recurso, o processo teria que ser julgado nas demais matérias, inclusive no seu preconceituoso mérito. O importante é saber que a turma Evandro Lins e Silva pode seguir adiante no seu trabalho, pois ela é melhor garantia de que o habitat do campo será abrigo seguro para o campo do direito, pois os seus filhos serão os advogados, magistrados e promotores e advogados, não precisando daqueles que nasceram na cidade para que lhes defenda nos tribunais, como ocorrera neste caso.
Qual a importância do PRONERA no combate às desigualdades na educação rural?
Fora exatamente para permitir a sobrevivência com dignidade da pessoa humana que mora no campo e o desenvolvimento sustentável de sua importante atividade é que fora criado o PRONERA e a turma especial de direito. E fixar o homem no campo é dar-lhe a certeza da segurança, da sobrevivência decente, da igualdade de tratamento, da liberdade de ir e vir não são sementes a serem jogadas em sólido árido.
É reconhecer o seu direito à moradia, princípio fundamental, não se aceitando a lógica de que mais de seiscentas mil famílias rurais moram em casa de taipa, quando não em barracas de lona ou em senzalas nas fazendas que ainda se utilizam do trabalho escravo.
É lhe garantir que o simples e necessário direito de beber água potável não está condicionando à vontade de um chefe político de plantão, que escolhe que o local em que o carro-pipa vai passar. É aplicar-lhe o constitucional direito à saúde, esta não mais conceituada com o ato de implorar o envio de uma ambulância que o levará o doente a um abarrotado hospital da cidade grande.
É fazer real o direito à educação, como dever do estado, não mais se admitindo que 40% dos trabalhadores rurais são analfabetos ou que mais de três milhões de crianças e adolescentes estão fora escola.
É saber que o seu pedaço de terra lhe permitirá o seu sustento e o de sua família, que o fruto do seu trabalho será comercializado a preço justo, é conhecer o conceito de arrendamento, de contrato de compra e venda da safra, de seguro para proteger a produção, evitando, assim, os atravessadores ou aqueles que buscam o lucro fácil sem o suor do labor.
É ser conhecedor dos direitos trabalhistas dos empregados rurais, da importância da carteira assinada, do direito à aposentadoria quando corpo cansar do sol e da chuva que lhe castiga a alma.
É conhecer dos créditos rurais, saber identificar os juros extorsivos e, se o tempo não ajudar na colheita, renegociar dignamente o contrato, para que não lhes levem os anéis e os dedos.
É conhecer do direito ambiental, das licenças ambientais, dos crimes ambientais, do crédito de carbono, para melhorar o seu desempenho e, com ele, o planeta.
É saber do direito de propriedade, do valor jurídico da posse, da legislação aplicável aos beneficiários da Reforma Agrária e, sobretudo, das formas legais e técnicas de solução dos conflitos agrários.
É fazer com que, como ensinou Dom Helder Câmara, as leis deixem o papel para ganhar as ruas e, sobretudo, o campo.
Esta vitória abre precedente para outros cursos que também estão sendo questionados?
Não tenho dúvida, pois a decisão do MPF que restara como última palavra a ser seguida é aquela que reconhece a constitucionalidade do convênio assinado pela UFG e o INCRA. Espero que ela seja multiplicada noutras turmas. A voz do campo será fundamental para a construção de um novo direito, especialmente quando questionar o patrimonialismo plantado no Brasil desde o descobrimento.
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