(Escravo sendo castigado, de Debret)
Este
texto é para quem não percebe a importância das cotas, das políticas de
ação afirmativa, para reparar uma injustiça histórica. Às vezes penso
que muitas pessoas não têm noção do que significa para um ser humano ser
escravizado. As marcas que isso deixou, os traumas, e inclusive a
absurda desvantagem em termos de ocupar um lugar digno na sociedade.
Darcy Ribeiro explica.
***
Apresado
aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa
armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de
escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco,
aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a
pescoço com outros negros, numa corda puxada até o corpo e o tumbeiro.
Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por
meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando
ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à
travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como
um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e
nos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à
terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o
destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas
por dia todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha,
devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua
capacidade de trabalhar, no dia seguinte, até à exaustão.
Sem
amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem
nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um
negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos –, maltrapilho e sujo,
feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do
corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário
das chicotadas soltas para trabalhar atento e tenso. Semanalmente, vinha
um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando
chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de
mutilação de dedos, do furo de seio, de queimaduras com tição, de ter
todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho,
sob 300 chicotadas de uma vez, para matar, ou 50 chicotadas diárias,
para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em
brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser
queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só,
jogado nela para arder como um graveto oleoso.
Nenhum
povo que passasse por isso como sua rotina de vida através de séculos
sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros,
somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós,
brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura
mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de
nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal
que também somos. Descendentes de escravos e senhores de escravos
seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto
pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais quanto
pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre
crianças convertidas em pasto de nossa fúria.
A
mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a
cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na
brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em
tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar
os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente
indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar
aqui uma sociedade solidária.
(Do livro “O povo brasileiro”, editora Companhia das Letras, 1995)
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