por Luana Tolentino, especial para o Viomundo
Há anos sofro com constantes crises de enxaqueca. Ontem, por exemplo,
passei a tarde inteira trancada num quarto escuro sem conseguir ao
menos abrir os olhos, tamanha a minha dor.
Para aumentar o meu calvário, estava sozinha em casa quando o
telefone tocou. Pensei em não atender: poderia ser, sei lá, uma
operadora de telemarketing da editora Abril tentando me vender a todo
custo uma assinatura da Veja. Por outro lado, imaginei
que pudesse ser alguém querendo dar uma notícia importante, urgente. A
segunda opção falou mais alto. Com a sensação de que minha cabeça pesava
uma tonelada, levantei para atender a ligação. Todo o meu esforço valeu
a pena! Era o Ronie, um ex-aluno que tive o privilégio de dar aulas no
ano passado.
Ronie me proporcionou uma das maiores alegrias de toda a minha vida!
Aluno exemplar, tive a oportunidade de vê-lo ingressar na Universidade
por meio do programa de Ações Afirmativas da ONG Educafro, em parceria
com o Centro Universitário de Belo Horizonte, tradicional instituição de
ensino superior de Minas Gerais. Aprovado no vestibular, Ronie ganhou
uma bolsa de estudos e hoje cursa Engenharia Elétrica.
As notícias não poderiam ser melhores. O garoto de 18 anos acabou de
concluir o primeiro dos 10 períodos necessários para se graduar na área
que escolheu. Ronie contou que suas notas foram excelentes, variaram
entre 80 e 90 pontos em cada disciplina. Após algumas entrevistas, ele
está na expectativa de ser contratado como estagiário por uma grande
empresa de construção civil. Segundo Ronie, os pais estão muito
orgulhosos do filho caçula. O primeiro da família a cursar uma
faculdade.
Ao ouvi-lo falar com tanto entusiasmo dessa nova etapa de sua vida, a
professora aqui não se aguentava de tanta felicidade! Vibrava como se
fosse eu a caloura. Ronie falou ainda que matriculou-se num curso de
inglês e já faz planos para fazer um intercâmbio. Contou dos novos
amigos, das festas e dos churrascos promovidos pela turma. Com a
autoridade de quem carrega no currículo inesquecíveis aventuras etílicas
nos tempos do curso de História, aconselhei-o: Fique longe dos botecos
hein, rapaz?! Uma gargalhada sonora se fez nos dois lados da linha, que
só foi interrompida quando ele perguntou:
– Professora, a senhora já imaginou, eu deixar de ser servente de pedreiro e virar engenheiro?!
Emudeci. Às vezes os alunos esquecessem que nós professores nem
sempre temos as respostas na ponta da língua. Embora parecesse simples,
naquele instante fui incapaz de responder à pergunta do futuro
engenheiro. Sem compreender o motivo do meu silêncio, Ronie insistiu:
– Professora? A senhora tá me ouvindo?
Respondi com um sim meio engasgado. Não consegui dizer nada além
disso. Nos despedimos com a promessa de que em breve eu teria mais
noticias boas. Ao desligar o telefone, lamentei o fato de ter respondido
à pergunta de forma monossilábica. Mas, hoje, ja refeita e consciente
da magnitude da mudança que está em curso na vida do meu ex-aluno,
telefonei e disse que vejo nele um engenheiro bem-sucedido, feliz,
realizado. Disse ainda que se em algum momento alguém tentasse negar a
sua alteridade ou duvidasse de sua capacidade, que seguisse em frente,
de cabeça erguida, na certeza de que possuir um diploma universitário é
um direito que ele tem.
Ronie se junta às centenas de jovens negros que, desde 2003, quando o
sistema de cotas foi implantado de forma pioneira na UERJ, tiveram a
oportunidade de ingressar no ensino superior, e assim criar
possibilidades reais de combate à vergonhosa desigualdade racial
existente entre brancos e não-brancos no Brasil. Ele corrobora com as
estatísticas que atestam que estudantes cotistas tem rendimento igual ou
superior ao dos demais alunos, desmistificando a teoria defendida por
muitos de que esse tipo medida reparatória provocaria a queda da
qualidade dos cursos.
Num país em que apenas 4% da população negra está matriculada em
instituições de ensino superior, Ronie é mais um exemplo da eficácia das
cotas como instrumento de reversão do quadro de injustiça no qual se
encontra a população afro-descendente. Em artigo publicado em 2007, o
antropólogo Kabengele Munanga é categórico ao dizer que experiências
realizadas em outros países mostram que este tipo de medida propicia
dentre outros benefícios, a maior representatividade de negros em
espaços majoritariamente ocupados por brancos e uma visível mobilidade
socioeconômica. Com a aprovação da Constitucionalidade das cotas pelo
Supremo Tribunal Federal (10X0!!!!!!!) em abril passado, a expectativa é
que aumente o número de universitários negros, principalmente em
instituições públicas, e que exemplos como os do Ronie se multipliquem
pelo país.
Ronie alimenta as minhas esperanças de que um Brasil mais equânime no
que diz respeitos as relações raciais e sociais é possível, ainda que o
caminho a ser percorrido seja longo, difícil, tortuoso. A corrente
contrária aos programas de ações afirmativas é grande, o que era de se
esperar num país extremamente racista como o nosso. Mas, tudo bem. Por
ora, pouco me importa os que, embriagados pelo mito da democracia
racial, insistem em dizer que cotas são esmolas, ou como disse um famoso
jornalista, que elas “são uma ameaça concreta ao nosso convívio
“harmonioso””. Agora, só me interessa comemorar com todo ardor esse
momento único. Muito!
Luana Tolentino: mulher, negra, canhota, gêmea univitelina.
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