A saga dos lacerdinhas e o fim do monopólio do rótulo
Durante muito anos, ouvindo rádio, vendo televisão e lendo jornais, eu
me espantava com uma unanimidade: todos os dias os mesmos rotulavam as
mesmas pessoas.
Todos os dias os mesmos rotulavam pomposamente seus oponentes de:
- Radicais
– Xiitas
– Fundamentalistas
– Ecochatos
– Malas
– Ignorantes
– Retrógrados
– Intransigentes
– Fanáticos
– Raivosos
– Obcecados ideológicos
Faziam isso em vários registros: ataques diretos, tom de ironia, pretenso humor, etc.
Tinham o monopólio do insulto, da rotulação, da etiquetagem. Só eles
falavam. Era tanta convicção que não parecia haver espaço para a dúvida
ou para o questionamento. Quem ia ver de muito perto o que estava
acontecendo, claro, descobria o óbvio:
– Radicais, xiitas, fundamentalistas, malas, ecochatos, ignorantes,
retrógrados, intransigentes, raivosos, fanáticos e obcecados ideológicos
era todos os que atrapalhavam os interesses daqueles que tinham o
monopólio do rótulo na mídia amiga.
Curiosamente quase todos os rótulos aplicados por eles cabiam-lhes
perfeitamente. Os lacerdinhas podem ser definidos, caracterizados e
explicados aos marcianos como:
– Radicais
– Xiitas
– Fundamentalistas
– Agrochatos
– Malas
– Ignorantes
– Retrógrados
– Intransigentes
– Raivosos
– Fanáticos
– Obcecados ideológicos
Há uma diferença: um lacerdinha é fanático, um obcecado ideológico que
se acha neutro, acima das ideologias, objetivo, imparcial, detentor da
verdadeira verdade.
Cansei de ver pessoas de diferentes partidos, marxistas ou não, sendo
rotulados com a maioria das etiquetas aqui apresentadas como sendo meras
constatações.
– Leonel Brizola era radical
– Maria do Rosário era fanática, raivosa, intransigente, etc.
– Luciana Genro idem
– Henrique Fontana também
– Heloísa Helena nem se fala.
Toda a esquerda era fundamentalista, fanática, ideológica, intransigente, etc.
Que estranho, que curioso: Paulo Maluf nunca recebia esses rótulos.
Podia ser chamado de ladrão, mas de fanático e obcecado ideológico,
pelos rotuladores da mídia, não.
Aprendi que todos os fanáticos e radicais eram bem menos fanáticos e
radicais que seus rotuladores, que chegavam, e chegam, a babar de raiva e
fanatismo quando os rotulam.
Nos últimos anos, depois da morte do fanático principal da mídia
fashion, Paulo Francis, que herdara a verve inescrupulosa de Carlos
Lacerda, surgiu uma penca de lacerdas com menos brilho, mas com muita
baba ideológica: Olavo de Carvalho, o autodenominado filósofo Pondé,
Reinaldo Azevedo, Arnaldo Jabor, Ali Kamel, Demétrio Magnoli e outros
lacerdões, campões de mediocridade obscena, que são os ídolos de
lacerdinhas regionais e de lacerdinhas sem mídia, numa cadeia ideológica
disseminada.
Falo tudo isso pelo seguinte: muitos lacerdinhas estão ofendidos. Não
aceitam ser rotulados. Acham que rotulá-los é desqualificação
inaceitável, agressiva e injusta.
Não admitem expressões como “cérebro de ervilha”.
Sentem-se saudades do tempo em que só eles podiam rotular.
Dez maneiras de identificar um lacerdinha:
1 – Um sujeito que, em nome da direita, diz que não há mais direita e
esquerda, fazendo, em seguida, um discurso furioso, radical e fanático
contra a esquerda que não existe.
2 – Um cara que, em defesa da sua ideologia, afirma que não existem mais
ideologias e, na sequência, faz um discurso ideológico fanático contra o
ideologismo de esquerda.
3 – Um sujeito que treme de fúria ideológica, chamando seus oponentes de
burros, atrasados, imbecis, perigosos e radicais, em nome da
neutralidade analítica.
4 – Um cara que, ao ouvir uma crítica a um ditador de direita, acha que
haverá necessariamente a defesa de um ditador de esquerda.
5 – Uma figura que jamais criticou a Lei do Boi – cotas para filhos de
fazendeiros em universidades públicas –, mas é contra cotas raciais e
até sociais.
6 – Um tipo que defende a democracia, mas está disposto a apoiar
ditaduras de direita se elas lhe trouxeram benefícios econômicos e
silenciarem seus oponentes.
7 – Um “ponderado” analista, defensor do Estado mínimo, que exigirá um
Estado máximo quando sua empresa estiver falindo ou precisando de um
empréstimo a juros baixos.
8 – Um crítico ferrenho de políticas de compensação por falta de
oportunidades equivalentes salvo quando, como produtor, exige
compensações por se sentir sem condições equivalentes para competir, por
exemplo, no mercado internacional.
9 – Um indivíduo que passa a vida classificando as pessoas em nós e
eles, fanáticos e razoáveis, estúpidos e racionais, xiitas e ponderados,
e, quando classificado de lacerdinha, faz longos discursos contra esse
tipo de simplificação classificatória.
10 – O representante de grupos que sempre encontraram maneiras de obter
benefícios a partir de casuísmos, leis de exceção, contingências mais ou
menos justificadas, contextos sociais e históricos, mas que, quando
seus oponentes se organizam para tirar-lhes privilégios ou reparar
prejuízos históricos, transformam-se em defensores de princípios
pretensamente racionais, abstratos e universais de concorrência.
Há outras maneiras de identificar um lacerdinha, mais práticas:
– Contra o golpismo de Chávez, mas a favor do golpe no Paraguai
– Contra cotas, aquecimento global, áreas de proteção permanente,
pagamento de multas por destruição do meio ambiente, código florestal
ambientalista, impostos sobre grandes fortunas, bolsa-família, Prouni e
outras políticas ditas assistencialista.
– A favor de incentivos fiscais para empresas multinacionais.
– Contra comissão da verdade e qualquer investigação que possa deixar
mal os torturadores do regime militar brasileiro implantado em 1964.
– Contra a corrupção, especialmente se envolver políticos de esquerda,
sem a mesma verve quando se trata de alguma corrupto de direita.
– Sempre pronto a chamar de petista quem lhe pisar nos calcanhares.
– Estrategicamente convencido de que a corrupção no Brasil foi inventada pela esquerda.
– A favor da universidade pública para os melhores, desde que o sistema
não se alterne e os melhores continuem sendo majoritariamente os filhos
dos mais ricos e com melhores condições de preparação e de ganhar uma
corrida pretensamente objetiva e neutra.
– A favor, quando se fala em cotas, de melhorar o nível do ensino básico
e de ampliar as vagas para evitar políticas discriminatórias,
esquecendo das tais melhorias assim que o assunto sai da pauta da mídia
ou é superado por alguma final de campeonato.
– Defensor da ideia de que, na vida, é cada um por si, salvo se houver
quebra de safra, redução nos lucros, crise econômica internacional ou
qualquer prejuízo maior. Nesses casos, o Estado deixa de ser tentacular,
abstrato e opressor para ser uma associação de pessoas em favor dos
interesses da sociedade na sua totalidade.
Faça o teste: quem preencher 60% dessas características é um lacerdinha.
Teste definitivo: lacerdinha é todo cara que se ofende ao ser chamado de lacerdinha.
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