Como a Globo (argentina) lucrou com os torturadoes
Saiu na
Carta Maior:
“Até hoje lembro os rostos de meus
torturadores. Porém, nenhum desses rostos, nenhum desses olhares, me
persegue e amedronta mais em meus pesadelos que o olhar de Héctor
Magnetto me dizendo que ou assinava a venda de Papel Prensa, ou eu e
minha filha seríamos mortas”, relatou Lidia Papaleo, viúva de David
Graiver, ex-proprietário de Papel Prensa, diante de um tribunal. Héctor
Magnetto era e continua sendo o principal executivo do grupo Clarín. O
artigo é de Eric Nepomuceno.
Eric Nepomuceno, de Buenos Aires
Na América Latina, não é nada
incomum – aliás, muito pelo contrário – que, durante regimes de
exceção, que é como os delicados de vocabulário e os débeis de caráter
chamam as ditaduras, grandes conglomerados de comunicações tenham
surgido, se consolidado e se transformado em impérios.
É curioso reparar como a forma em
que esses grupos e organizações foram criados corresponde a uma clara
divisão do mercado, cuidando sempre de reservar espaço para que atuem,
na prática, como monopólios. Assim, passam a impor suas vontades e suas
visões do mundo, que no fundo são o eco exato do que dita a voz do
poder econômico. Dizem não depender do governo, o que, a propósito, é
mentira. Nada dizem de sua dependência vital, direta, do poder
econômico, sua verdadeira verdade.
Observar essa espécie de fenômeno
comum às nossas comarcas mostra a clara existência de um modelo,
implantado aqui e acolá com leves variações, mas sempre ao redor do
mesmo mecanismo.
Por trás da furiosa oposição que o
grupo Clarín faz ao governo de Cristina Fernández de Kirchner existe
uma história linear, típica desse mecanismo.
O grupo apoiou sem pejos uma
ditadura espúria, com todos os ingredientes comuns às nossas comarcas
(favorecimento do poder econômico à custa do atropelo dos direitos
civis mais elementares, sedução e cumplicidade de parcelas das classes
médias, omissão diante da atuação brutal dos agentes encarregados de
impor o terrorismo de Estado, através de prisões ilegais, torturas,
assassinatos e desaparecimentos de opositores). Nesse período, se
fortaleceu enormemente.
Assim, o retorno da democracia
encontrou o grupo consolidado, e oscilando levemente ao sabor dos novos
ares. Soube ser crítico na medida exata – medida limite – durante todos
os governos seguintes, observando sempre que não fossem tocados de
forma direta seus interesses (ou seja, os do poder econômico
preponderante, o interno e o externo) e que as manchas do passado não
fossem trazidas à luz do sol.
Até que tropeçou com um governo de
outra tintura, que resolveu correr o risco de enfrentar os tais
interesses e atiçar o passado. A crescente polarização que a Argentina
vive nos últimos anos não faz mais que fortalecer esse embate.
O espaço para a crítica clara e
frontal – e o governo de Cristina Kirchner merece e deve ser criticado
em copiosos aspectos – perdeu lugar para a confrontação aberta, sem
regras e princípios. A manipulação e a distorção de fatos e informações
passaram a ser o pão de cada dia.
Acontece que, muitas vezes, não
basta com ocultar ou sabotar informação. A vida tem seus próprios
caminhos, e esses caminhos frequentemente escapam do controle dos que
se acreditam capazes de controlar a própria realidade.
Agora mesmo tornou a saltar ao sol
uma das fontes de tamanha fúria, um dos grandes nós desta questão: o
passado do Clarín. Trata-se de uma série de revelações que o jornal já
não consegue mais tapar.
Dia desses, e uma vez mais, Lidia
Papaleo, viúva de David Graiver, falou. Agora, diante de um tribunal. E
tornou a repetir, com mais detalhes que antes, o que viveu depois da
misteriosa morte do marido no México, em agosto de 1976 (a ditadura de
Videla tinha escassos cinco meses de vida), num desastre de avião
jamais explicado.
Agora, e de novo, ela contou, com
todas as letras, como foi coagida a vender ao Clarín as ações com que
Graiver, um financistas astuto e brilhante, controlava a Papel Prensa,
única fornecedora e distribuidora de papel-jornal no país.
Contou como foi presa depois –
depois – de ter fechado o negócio. Os compradores foram o desaparecido
jornal ‘La Razón’, o ‘La Nación’, e, levando a maior parte, o ‘Clarín’.
A certa altura de seu depoimento,
Lidia Papaleo contou das sevícias que padeceu. Muitas vezes, depois de
vexada, era largada estendida no chão da cela ou da sala de tormento.
‘E então eles vinham e cuspiam e ejaculavam em cima de mim’, contou ela.
Antes que o juiz interrompesse a
sessão para que o público abandonasse o recinto e ela pudesse continuar
com seu rosário de horrores, Lidia disse:
– Até hoje lembro os rostos de
meus torturadores. Porém, nenhum desses rostos, nenhum desses olhares,
me persegue e amedronta mais em meus pesadelos que o olhar de Héctor
Magnetto me dizendo que ou assinava a venda de Papel Prensa, ou eu e
minha filha seríamos mortas.
Pois bem: Héctor Magnetto era e
continua sendo o principal executivo do grupo Clarín. Foi quem, naquele
distante 1976, e antes do sequestro e das torturas de Lidia Papaleo, se
reuniu com ela, e foi diante dele que ela capitulou.
Meses depois, assim que a
transação foi sacramentada, Lidia acabou sendo levada para os
calabouços do horror. Por quê não a prenderam antes? Por uma questão
legal: havia uma lei que passava diretamente às mãos do Estado as
propriedades dos subversivos presos. E a ditadura não queria se
apoderar da fábrica Papel Prensa: queria compensar os bons serviços
prestados ao regime pelos três jornais contemplados.
Por quê a prenderam? Por achar que
havia mais patrimônio a ser espoliado. E porque era mulher, tinha sido
casada com um financista acusado de cuidar do dinheiro dos Montoneros
e, enfim, porque prender, violar e vexar era parte da rotina do sistema
que compensou o silêncio cúmplice e interessado dos Magnettos da vida.
Assim começou a fortaleza e o
império do grupo Clarín. Depois vieram as concessões de rádio e
televisão em cascata, depois veio todo o resto.
Essa a história que há por trás da
história. Os mesmos métodos aplicados contra Lidia Papaleo continuam
sendo aplicados no dia-a-dia do grupo.
Nisso, pelo menos, há que se
reconhecer uma consistente coerência: os que controlam o grupo Clarín
jamais deixaram de ser o que foram. Continuam agindo como agiram, e
cuidando, sempre, de jamais se aproximar da perigosa linha que marca o
início de um território que desconhecem, chamado dignidade.
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