por Vladimir Safatle
As atuais manifestações que sacodem a Europa trouxeram uma reivindicação que há muito não se ouvia em países como Reino Unido, Espanha, França: democracia real. Há algo de importante aqui.
Pois poderíamos nos perguntar o que haveria de fictício na democracia de países que aprendemos a ver como exemplos de sistemas políticos consolidados. Por que largas parcelas de sua população compreendem que há algo no jogo democrático que parece ter se reduzido exatamente à condição de mero jogo?
Talvez tais manifestantes entenderam que a democracia parlamentar é incapaz de impor limites e de resistir aos interesses do sistema financeiro. Ela é incapaz de defender as populações quando os agentes financeiros começam a operar, de modo cinicamente claro, a partir dos princípios de um capitalismo de espoliação dos recursos públicos.
Não é por outra razão que se ouve, cada vez mais, a afirmação de que a alternância de partidos no poder não implica mais alternativas de modelos de compreensão dos conflitos e políticas sociais. Por isso, o cansaço em relação aos partidos tradicionais não é sinal do esgotamento da política. Na verdade, ele é o sintoma mais evidente de uma demanda de política, de uma demanda de politização da economia.
Em momentos assim, devemos lembrar que a democracia parlamentar não é o último capítulo da democracia efetiva. A Islândia tem algo a nos ensinar sobre isso.
Um dos primeiros países atingidos pela crise econômica de 2008, a Islândia decidiu que o uso de dinheiro público para indenizar bancos seria objeto de plebiscito. Maneira de recuperar um conceito decisivo, mas bem esquecido, da democracia, a saber, a soberania popular. O resultado foi o apoio massivo ao calote.
Mesmo sabendo dos riscos de tal decisão, o povo islandês preferiu realizar um princípio básico da soberania popular: quem paga a orquestra, escolhe a música.
Se a conta vai para a população, é ela quem deve decidir o que fazer, e não um conjunto de tecnocratas que terão seus empregos garantidos nos bancos ou de parlamentares cujas campanhas são financiadas por esses bancos. Como disse o presidente islandês, Ólafur Ragnar Grímsson: "A Islândia é uma democracia, não um sistema financeiro".
O interessante é que, com isso, saímos dos impasses da democracia parlamentar para dar um passo decisivo em direção a uma democracia plebiscitária capaz de institucionalizar a manifestação necessária da soberania popular.
É tal processo que nos coloca nas vias de uma democracia real. Ele é a condição primeira para sair da crise. Pois a verdadeira questão que tal crise nos coloca é política: que regime político é este que permitiu um descalabro deste tamanho na calada da noite?
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