sábado, 2 de julho de 2016

Matar crianças pobres em São Paulo é aceitável para a elite branca

Inversão de valores
Guilherme Boulos

Matar uma criança é o crime universalmente mais abominado. Correto? Depende. De quem morre e de quem mata.

No último mês as forças policiais de São Paulo mataram duas. Ítalo, de apenas dez anos, foi morto com um tiro na cabeça por policiais militares, no último dia 2, na zona sul da capital. E Waldik, de onze, foi assassinado por um guarda civil na semana passada na Cidade Tiradentes.

Ah, se fosse nos Jardins! Os assassinos estariam presos e milhares de pessoas teriam marchado na avenida Paulista com balões brancos. A sociedade se comoveria ante dois futuros ceifados e saberíamos hoje todos os detalhes de suas vidas, seus gostos e preferências. Seriam tratados, enfim, com o luto que se reserva às crianças mortas.

Mas nem todas as crianças têm direito a esse luto. Dois garotos pobres e mortos em "perseguições policiais" não parecem ser dignos de nossa empatia.

O que se sabe da história de Ítalo é uma sucessão de sofrimentos. Abandonado pelos pais, foi encontrado empinando pipa e pedindo comida na rua. Levado a abrigos, uma psicóloga que o acompanhou relata que, apesar das marcas de queimadura de cigarro pelo corpo, era alegre e ensinava as crianças a fazer pipa. Entre a revolta do abandono e a alegria infantil, alimentava o sonho de ser cantor.

Já Waldik vivia com a família e, como as crianças de sua idade, gostava de jogar bola e andar de bicicleta. Em uma de suas últimas fotos aparece sorridente na praça de alimentação do shopping, após ter ido ao cinema. "Vou sentir que ele morreu depois, que ele não vai estar mais na caminha dele", disse dona Orlanda, a mãe.

Duas crianças, nenhuma comoção. Mas o sinal de horror não está apenas na falta de empatia, numa certa indiferença social ao assassinato dos dois. Vai além disso, numa perversa inversão de valores.

Moradores do Morumbi, bairro onde Ítalo foi morto, organizaram um ato em defesa dos "heróis" da PM, em referência aos assassinos do menino. Nas redes sociais proliferaram postagens apresentando as duas crianças como elementos perigosos e comemorando as mortes.

A inversão consiste em apresentar as vítimas como vilões, ainda que sejam crianças de dez e onze anos. Dando voz institucional a isso, o deputado Coronel Camilo (PSD) apresentou um projeto para desmontar a Ouvidoria da Polícia de São Paulo, órgão de controle externo da atividade policial, após declarações do ouvidor em relação ao assassinato de Ítalo.

O ouvidor, Julio Cesar Fernandes Neves, afirmou ver indícios evidentes de irregularidade na ação policial e cobrou investigações. Disse o que qualquer pessoa sensata diria. E o que, aliás, ficou comprovado em perícia posterior, mostrando adulteração da cena do crime pelos policiais.

Mas, como se sabe, nenhuma situação é tão absurda que não possa piorar. O projeto do Coronel Camilo pretende acabar com a indicação da lista tríplice para a Ouvidoria por órgãos da sociedade civil e permitir a exoneração do ouvidor pelo governo antes do fim do mandato. Trata-se, de fato, de destruir qualquer autonomia do órgão.

A Ouvidoria divulgou recentemente o dado de que as forças policiais paulistas mataram 191 crianças e adolescentes nos últimos seis anos, revelando que os casos de Ítalo e Waldik não foram isolados. Mostrou ainda que 60% desses jovens são negros.

É compreensível que denúncias como essa incomodem uma instituição pouco acostumada à transparência e que parece ter salvo-conduto para matar.

O ouvidor está correto e precisa ser respaldado. A Ouvidoria deve ser fortalecida como instituição independente, ganhando inclusive mais prerrogativas na investigação dos crimes praticados por policiais.


Há algo de errado quando os policiais que mataram uma criança estão soltos e quem os denuncia é posto sob suspeita.

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