domingo, 17 de janeiro de 2010

A força unilateral do bem ?

"Virtualmente todos os povos com vizinhos mais fracos atacaram e saquearam os vizinhos e quando possível os subjugaram, às vezes os dizimaram. Competição por poder e riqueza sempre esteve interligada com as outras forças que movem a História". Victor Kiernan em Impérios e Exércitos Coloniais, 1815-1960.

por Luiz Carlos Azenha

Diz-se, nos Estados Unidos, que a política externa de Washington é ditada pelas necessidades domésticas do ocupante da Casa Branca. É verdade.

O presidente Barack Obama acaba de resgatar George W. Bush das trevas para encarregá-lo, ao lado de Bill Clinton, de liderar uma campanha nacional para levantar fundos e dirigir a aplicação do dinheiro no Haiti.

Os Estados Unidos são o único país do mundo com o poder logístico suficientemente sofisticado para atender aos milhões de haitianos que tiveram as vidas completamente devastadas por um terremoto. Dispõem de alta tecnologia, de Forças Armadas numerosas e do poder político necessário para deslocá-las para qualquer parte do mundo.

O constrangimento a que o Brasil foi submetido nas últimas horas é natural em circunstâncias extraordinárias como as atuais. Washington pode deslocar com facilidade 10 mil soldados para o Haiti em algumas horas, mais do que todo o contingente da Missão de Estabilização das Nações Unidas, a Minustah, presente no país.

O Exército americano dispõe de tradutores, de equipamento e de provisões para cumprir todas as tarefas necessárias em um desastre como o do Haiti, ou pelo menos cumprí-las melhor que uma tropa da ONU que fala diversos idiomas, tem dificuldades para se comunicar em francês com os haitianos ou não dispõe de um porta-aviões com aeronaves que facilitam o transporte.

Mais do que isso, é preciso considerar que o Pentágono passou a enfatizar as ações humanitárias para dar cobertura ao seu envolvimento na política interna de seus vizinhos de Hemisfério.

Durante o governo de George W. Bush, houve um deslocamento da política externa dos Estados Unidos dos diplomatas do Departamento de Estado para os militares e os formuladores do Pentágono, com grande ênfase em ações humanitárias. Os fuzileiros navais desembarcariam não mais para trocar governos ou matar a população civil, mas em nome de salvá-las de desastres naturais, ecológicos, caos social ou outras emergências do gênero.

Os dois maiores projetos militares dos Estados Unidos para a América Latina são apresentados com um tom humanitário e/ou policial: o combate ao narcotráfico na Colômbia e a Iniciativa Mérida, no México.

Para combater as consequências da desigualdade social resultante da política de governos que tiveram o apoio dos Estados Unidos, Washington não prega reformas econômicas ou sociais, nem o atendimento das demandas políticas da população local. Propõe uma política salvacionista, que aprofunda a dependência das elites locais da benesse dos Estados Unidos.

Podem chamar de imperialismo com outro nome. É este o sentido da oposição dos Estados Unidos a Hugo Chávez: o presidente venezuelano representa o ressurgimento do nacionalismo na América Latina e a pregação dele em defesa da soberania local se contrapõe diretamente ao controle dos Estados Unidos sobre o hemisfério que é extensão do território estadunidense.

Embora Washington tenha se "distraído" durante o governo Bush com aventuras militares no Oriente Médio, razão pela qual concordou em dividir com o Brasil algumas das atribuições de patrulhar a América Latina, os formuladores da política externa americana se deram conta de que é preciso assumir o controle regional, especialmente num quadro de escassez de recursos energéticos, da invasão de sua zona de influência por paises como a China e a Rússia e da ascensão de um modelo alternativo expresso por Chávez-Morales-Correa.

Chávez está sentado sobre gigantescas reservas de petróleo. Morales, sobre gigantescas reservas de gás. Correa desmantelou uma base militar importante para os Estados Unidos na costa da América do Sul.

É nesse quadro que devemos entender o comportamento dos Estados Unidos em Honduras, na ampliação de sua presença militar na Colômbia e agora, diante do terremoto no Haiti.

A proposta do presidente francês Nicolas Sarkozy de uma reunião entre Brasil, França e Estados Unidos para discutir o futuro do Haiti foi descartada por Washington em um primeiro momento.

Para se contrapor ao controle dos Estados Unidos sobre a América Latina o Brasil tem tentado atrair a França para uma parceria militar estratégica. A França, além de ter um território ultramarino na América do Sul, a Guiana Francesa, tem interesses no Caribe (Martinica, Guadaloupe, San Martin) e uma história (trágica) no Haiti.

Para além dessas considerações geopolíticas, no entanto, é preciso considerar a política doméstica dos Estados Unidos.

Barack Obama, depois de aprovar uma reforma do sistema de saúde que reduziu a sua aprovação interna junto ao eleitorado, especialmente depois de ter usado bilhões em dinheiro público para resgatar os bancos -- 117 bilhões de dólares, pelas contas da Casa Branca --, precisa urgentemente de "vitórias políticas" que sustentem a coalizão que pode levá-lo à reeleição.

No Haiti, ele só tem a ganhar. Primeiro, por se tratar de uma ação humanitária que poderá reconstruir a imagem dos militares dos Estados Unidos diante do mundo ocidental -- depois dos desastres que resultaram da invasão do Iraque e do escândalo da tortura em Guantánamo e outras instalações.

Segundo, pela demonstração de interesse pelo destino de milhões de negros como ele, Obama, embora seja conveniente esquecer aqui que eles são vítimas de regimes políticos que tiveram pleno endosso dos Estados Unidos -- Papa Doc e Baby Doc, os ditadores do Haiti, foram anticomunistas sanguinários que serviram quando foi preciso conter a "infecção" cubana.

O presidente "populista" e "autoritário" do Haiti, Jean Bertrand Aristide, foi uma espécie de Hugo Chávez antes-da-hora: foi eleito justamente quando as políticas neoliberais propostas por Washington como saída para a América Latina estavam no auge. Talvez isso ajude a explicar porque ele curte exílio na África do Sul e o partido dele foi banido no Haiti.

Ao resgatar George W. Bush das trevas, Obama agora pode posar de "caminho do meio" diante do eleitorado dos Estados Unidos, como homem que não guarda ressentimentos, que coloca o interesse humanitário acima das disputas políticas. Num quadro político altamente polarizado como é o dos Estados Unidos hoje, o presidente fica bem na fita tanto com republicanos moderados quanto com a centro-esquerda do Partido Democrata da qual havia se afastado para salvar os banqueiros. Coloca os pés firmemente no centro político, entre George W. Bush e Bill Clinton, onde estão os independentes sem os quais jamais conseguirá se reeleger.

Obama resgata George W. Bush da mesma forma que resgata os haitianos e será o caudatário da gratidão de ambos. Através dos dois ex-presidentes, que com certeza levantarão milhões de dólares para aplicar no Haiti, os Estados Unidos farão esse resgate dentro de um modelo político e econômico aceitável para seus próprios interesses.

Nesse momento, não interessa a Washington atuar através da ONU ou de supostos parceiros. Faz muito mais sentido para o governo dos Estados Unidos, tão castigado nos últimos anos pelo recurso unilateral à força para matar, saquear e controlar outros povos, agir agora como uma força unilateral do bem.

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