Via CartaMaior
Marco Aurélio Weissheimer
O
inferno está pavimentado de boas intenções. A frase cai como uma luva
para contextualizar o debate sobre os políticos ¿ficha-suja¿ e o projeto
“ficha-limpa” que ganhou grande apoio no país, à direita e à esquerda.
Pouca gente vem se arriscando a navegar na direção contrária e a
advertir sobre os riscos e ameaças contidos neste projeto que, em nome
da moralização da política, pretende proibir que políticos condenados
(em segunda instância) concorram a um mandato eletivo.
A
primeira ameaça ronda o artigo 5° da Constituição, que aborda os
direitos fundamentais e afirma que “ninguém será condenado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Professor de
Direito Penal na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Túlio
Vianna resumiu bem o problema em seu blog:
¿Se
o tal projeto Ficha Limpa for aprovado, o que vai ter de político sendo
processado criminalmente só para ser tornado inelegível¿Achei que o
art.5º LVII exigisse trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Deve ser só na minha Constituição. Se o ¿ficha-limpa¿ não fere a
presunção de inocência, é pior ainda, pois vão tolher a exigibilidade do
cidadão mesmo sendo inocente. Êh argumento jurídico bão: nós
continuamos te considerando inocente, mas não vamos te deixar candidatar
mesmo assim! Que beleza! Ou o cara é presumido inocente ou é presumido
culpado. Não tem meio termo. Se é presumido inocente, não pode ter
qualquer direito tolhido¿.
Na mesma linha, o jornalista e ex-deputado federal Marcos Rolim
também chamou a atenção para o fato de que o princípio da presunção da
inocência é uma das garantias basilares do Estado de Direito e que o que
o projeto ficha limpa pretende estabelecer é o “princípio de presunção
de culpa”. Além disso, Rolim lembra que a idéia de ficha limpa não é
nova e já foi apresentada no Brasil, durante a ditadura militar:
“Foi
a ditadura militar que, com a Emenda Constitucional nº 1 e a Lei
Complementar nº 5, estabeleceu a cassação dos direitos políticos e a
inegibilidade por ¿vida pregressa¿; vale dizer: sem sentença
condenatória com trânsito em julgado”.
E se a
idéia de ficha limpa é pra valer, acrescenta o jornalista e ex-deputado
federal, por que não aplicá-la também aos eleitores:
“Se
pessoas com “ficha suja” não podem se candidatar, por que mesmo
poderiam votar? Nos EUA, condenados perdem em definitivo o direito de
votar, o que tem sido muito funcional para excluir do processo
democrático milhões de pobres e negros, lá como aqui, “opções
preferenciais” do direito penal. E a imprensa? Condenações em segunda
instância assinalam uma ¿mídia ficha suja¿ no Brasil?”
Mas
talvez a ameaça mais grave, e menos visível imediatamente, que ronda
esse debate é a incessante campanha de demonização dos políticos e da
atividade política, impulsionada quase que religiosamente pela mídia
brasileira. Rolim cita como exemplo em seu artigo uma charge publicada
no jornal Zero Hora sobre o tema: na charge de Iotti, políticos são
retratados como animais peçonhentos, roedores, aracnídeos e felinos.
Nos
últimos anos, diversas pesquisas realizadas em vários cantos do planeta
registraram um crescente descrédito da população em relação à política e
aos políticos de um modo geral. Prospera uma visão que coloca a classe
política e a atividade política em uma esfera de desconfiança e perda de
legitimidade. A tentação de jogar todos os partidos e políticos em uma
mesma vala comum de oportunistas e aproveitadores representa um perigo
para a sobrevivência da própria idéia de democracia. O que explica esse
fenômeno que se reproduz em vários países? A política e os políticos
estão, de fato, fadados a mergulhar em um poço sem fundo de
desconfiança? Essa desconfiança deve-se unicamente ao comportamento dos
políticos ou há outros fatores que explicam seu crescimento?
É
sintomático que o debate sobre a “ficha limpa” apareça dissociado do
tema da reforma política. Eternamente proteladas e engavetadas, as
propostas de uma mudança na legislação sobre as eleições e o
financiamento das campanhas não obtém mesmo o alto grau de consenso e
mobilização. Vale a pena lembrar de uma observação feita pelo filósofo
esloveno Slavoj Zizek acerca do papel da moralidade na política. Ele
analisa o caso italiano, onde uma operação Mãos Limpas promoveu uma
devassa na classe política do país. Qual foi o resultado? Zizek comenta:
“Sua
vitória (de Berlusconi) é uma lição deprimente sobre o papel da
moralidade na política: o supremo desfecho da grande catarse
moral-política, a campanha anticorrupção das mãos limpas que, uma década
atrás, arruinou a democracia cristã, e com ela a polarização ideológica
entre democratas cristãos e comunistas que dominou a política italiana
no pós-guerra ¿ é Berlusconi no poder. É algo como Rupert Murdoch vencer
uma eleição na Grã-Bretanha: um movimento político gerenciado como
empresa de publicidade e negócios. A Forza Itália de Berlusconi não é
mais um partido político, mas sim como o nome indica “uma espécie de
torcida”. (Às portas da revolução", Boitempo, p. 332)
A eleição de políticos de ¿tipo Berlusconi¿ mostra outra fragilidade dessa idéia. Marcos Rolim desdobra bem essa fragilidade:
Muitos
dos corruptos brasileiros possuem “ficha limpa”, especialmente os mais
espertos, que não deixam rastros. Por outro lado, uma lei do tipo na
África do Sul não teria permitido a eleição de Nelson Mandela, cuja
“ficha suja” envolvia condenação por “terrorismo”. Várias lideranças
sindicais brasileiras possuem condenações em segunda instância por
¿crimes¿ que envolveram participação em greves ou em lutas populares;
devemos impedir que se candidatem?
Agora
mesmo, cabe lembrar, no Rio Grande do Sul e em São Paulo lideranças
sindicais estão sofrendo condenações por protestos realizados contra os
governos dos respectivos estados. Já não estão mais com sua ficha limpa.
Os governantes dos dois estados, ao contrário, acusados de envolvimento
em esquemas de corrupção, de autoritarismo e de sucateamento dos
serviços públicos seguem com a ficha limpíssima. É este o caminho? Uma
aberração político-jurídica vai melhorar nossa democracia?
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