O grito que anda presente nas ruas assusta leigos, que
costumam reagir com a pergunta: “E na hora em que for assaltado, vou
chamar quem?”, como se desmilitarizar significasse a extinção de
policiamento ou da própria polícia. Não significa. Trata-se apenas de
transferir esse “serviço” para uma polícia sem arquitetura militar.
Regida pelo artigo 144 da constituição federal, a segurança
pública destina à polícia civil apenas o poder de investigação e
apuração de infrações penais (e levar os casos ao poder judiciário),
ficando a cargo da polícia militar o policiamento ostensivo e
“preservação da ordem pública”. Isso por si só já é problemático pois,
evidentemente, uma polícia lava as mãos tão logo passa o bastão adiante.
Mas o ponto em questão é a cultura e a hierarquia às quais
os militares são submetidos em seu treinamento, nos moldes das Forças
Armadas. Militares são treinados e preparados para defender o país
contra inimigos. É uma postura radicalmente diferente de quem vai lidar
com o próprio povo. Nós não estamos em guerra. Sobretudo contra nós
mesmos. E uma polícia “contra” o povo só faz sentido em ditaduras. Nós
também não estamos em uma, estamos?
“A polícia não pode ser concebida para aniquilar o inimigo.
O cidadão que está andando na rua, que está se manifestando, ou mesmo o
cidadão que eventualmente está cometendo um crime, não é um inimigo. É
um cidadão que tem direitos e esses direitos tem de ser respeitados”,
disse Túlio Vianna, professor de Direito Penal na UFMG durante uma aula
pública realizada em julho, no vão do Masp. O professor condena ainda a
existência do código penal próprio da PM, aplicado para policiais que
cometem delitos: “É muito cômodo você ter uma justiça que te julga pelos
próprios pares”.
O tema é espinhudo até entre PMs. Um coronel da PM do Rio
Grande do Norte entrou com uma representação contra um tenente que se
posicionou à favor da desmilitarização, num post em seu perfil no
Facebook. Sinal dos tempos, a Associação dos Cabos e Soldados da PM/RN
saiu em defesa do tenente: “O Tenente Silva Neto teve o privilégio de em
sua carreira militar ter sido soldado e, por isso, tem uma visão ampla
dessa questão do militarismo e de suas implicações, hierarquizada na
nossa corporação, (…) Por tudo aduzido acima, a Associação dos Cabos e
Soldados expressa a sua mais sincera admiração pelo tenente Silva Neto,
além de disponibilizar o núcleo jurídico da nossa entidade a fim de
ofertar defesa frente à representação apresentada pelo Coronel PM
WALTERLER”.
A hierarquia militar é propícia a abusos. Carlos Alberto Da
Silva Mello é cabo da polícia em Minas Gerais e favorável à
desmilitarização e postou no portal EBC (Empresa Brasil de Comunicação):
“Bom dia, sou PM e vejo na desmilitarização o avanço da segurança
pública no nosso país. Os coronéis são contra porque eles perderiam o
poder ditatorial, acabaria os abusos de autoridade contra os praças,
acabaria o corporativismo que existe nas PMs (…) Fim do militarismo, não
o fim das polícias e sim (o fim) de um regime autoritário, desumano,
arrogante, (…) A sociedade não toma conhecimento do que se passa dentro
da PM. Todo cabo, soldado e sargentos são a favor da DESMILITARIZAÇÃO
DAS PMS. O militarismo é o retrocesso (…) os abusos são constantes
dentro dos cursos de formação de soldados.”
O ranço bélico que existe na PM está em superexposição
desde junho. A falta de critérios para utilização de armas “não letais”,
a gratuidade da violência, a truculência figadal, as táticas de
emboscada. A atitude de colocar a tropa de choque, bombas de gás e balas
de borracha ao lado de manifestantes já incita a tensão por seu caráter
repressor. Em todas as ocasiões em que o exibicionismo da força militar
esteve ausente, não houve bagunça, baderna, vandalismo, chamem como
quiserem. Não é coincidência. Somado a atitudes autoritárias (e ilegais)
como a detenção “para averiguação” que vem ocorrendo sistematicamente,
temos um quadro que exige a revisão desse artigo 144 urgentemente.
O que se deseja nem é o desarmamento. Embora Londres possa
sempre ser lembrada como exemplo de polícia desarmada, não fechemos os
olhos em busca de utopia (mas há dados interessantes a se saber com
relação a isso e que podem alimentar sonhos: uma pesquisa interna feita
com os policiais britânicos, 82% deles disseram que não queriam passar a
portar arma de fogo em serviço, mesmo quando cerca de 50% dos mesmos
policiais disseram ter passado por situações que consideraram de “sério
risco” nos 3 anos anteriores à pesquisa).
O que se deseja são uma ouvidoria e uma corregedoria
minimamente eficientes e atuantes, de modo a pelo menos inibir
declarações surreais como o já famoso “Fiz porque quis” proferida por um
BOPE em Brasília, ou um alucinado policial sem identificação insultando
diversos advogados no meio da rua, ou o sargento Alberto do Choque do
RJ que ontem respondeu com um “Não te interessa” ao questionamento da
falta de identificação, todos convictos da inconsequência de seus atos
(se você não é do Rio de Janeiro, aconselho que acompanhe de perto o que
tem se passado lá todas as noites).
É evidente que isso veio à tona desde que os filhos da
classe média passaram a ser as vítimas. Na periferia é ancestral e
sempre foi ignorado ou menosprezado. Portanto que se aproveite o
momento. Os benefícios de uma polícia não militarizada refletiria em
toda a sociedade.
Um dos caminhos seria a unificação das policias civil e
militar, algo possível apenas através de uma emenda à constituição. Isso
não se consegue da noite para o dia, portanto, quanto antes se começar a
mexer nesse vespeiro, mais cedo teremos algum avanço. O que não é
possível é ficar assistindo reintegrações de posse se tornarem
espetáculos de carnificina com requintes de crueldade como vemos hoje.
Já deu.
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