Quando se discute a conjuntura política
atual, um equívoco muito comum é ignorar um dos principais elementos de
atuação e interferência na dinâmica do Estado Democrático de Direito
atual, a participação da Polícia Federal, sobretudo do ponto de vista do
uso de informações sigilosas adquiridas ao longo da Operação Lava Jato.
Quem comete esse equívoco não só retira
da análise um fator crucial para entender a dinâmica dos acontecimentos,
como mascara que a posição da Polícia Federal, para ser mais
específico, de uma categoria dela, os delegados, nunca foi uma postura
de neutralidade. Na verdade, os sucessivos acontecimentos evidenciam
cada vez mais como os delegados estão operando uma ruptura do ponto de
vista das funções do Departamento de Polícia Federal e, sobretudo, da
legalidade democrática.
O primeiro elemento a ser analisado é
que um problema estrutural da Polícia Federal gera uma divisão classista
que produz uma série de conflitos internos. A ausência de carreira
única, ou seja, uma porta de entrada única na polícia que permita ao
indivíduo crescer na carreira policial de acordo com o seu trabalho e
sua capacidade, faz com que uma série de policiais competentes sejam
submetidos à uma categoria extremamente inexperiente do ponto de vista
da ciência policial, que são os delegados. Não por acaso, ao observar a
organização de outras instituições policiais do mundo podemos constatar
com tranquilidade que apenas no Brasil existe o cargo de delegado, e
posteriormente, nos parecerá estranho que indivíduos egressos
recentemente da faculdade de Direito e sem experiência alguma do ponto
de vista da operacionalidade policial, sem nenhuma experiência na
atuação em campo, estejam chefiando as organizações policiais no Brasil
todo. A existência do cargo de delegado não só impede a valorização dos
profissionais individualmente, como também promove um verdadeiro
desserviço ao funcionamento da estrutura de segurança pública como um
todo. Então, essa divisão entre agentes e delegados é muito mais que uma
disputa interna pelo poder, é a luta pelo rompimento de um modelo de
polícia atrasado e que não valoriza o policial. Nesse sentido, fica
claro que os delegados não têm interesse no avanço da segurança pública
no Brasil, porque esse avanço necessariamente significaria o fim do
cargo, e consequentemente, da série de benefícios dos quais os delegados
estão sujeitos.
Devemos investigar então como os
delegados conseguem impedir o avanço do sistema de segurança pública
brasileiro, e mais que isso, como eles se localizam e interferem na
conjuntura política atual. Para entender isso, é necessário entender que
o papel do delegado na polícia é unicamente presidir o inquérito
policial. O inquérito policial é o aparato burocrático e ultrapassado
que corresponde a um dos modos de formalização da investigacao criminal,
e que centraliza toda a investigação na figura do delegado. Como a
Operação Lava Jato vem nos mostrando, em uma investigação da Polícia
Federal uma série de informações sigilosas são obtidas e utilizadas
pelos policiais ao longo do procedimento investigativo. Dito isso, a
grande questão é que, com uma investigação centralizada na figura do
delegado, todas essas informações são manipuladas estrategicamente com o
objetivo de conquistar benefícios para a classe.
O papel das polícias investigativas é
abastecer o Ministério Público de informações acerca da autoria e
materialidade dos crimes. No entanto, não é incomum observar nos
noticiários a quantidade de vezes que o Ministério Público não indicia
um determinado político por falta de provas. Isso acontece porque os
delegados, tendo em vista seus interesses de classe, retêm informações
que lhe são consideradas estratégicas para mais tarde serem usadas como
objeto de chantagem. Se o delegado tem informação de um determinado
político, lhe é muito mais conveniente usar essa informação para
chantegeá-lo às vistas dos interesses da classe do que enviar a
informação para o Ministério Público começar o processo de indiciamento,
que é do interesse de outra classe, a trabalhadora. Observar isso é
muito importante para compreender como o vazamento seletivo de
informação que tem sido promovido pelos delegados de polícia interfere
da dinâmica política na atual conjuntura, e mais do que isso, é
importante para compreender como os delegados representam uma ameaça do
ponto de vista da legalidade democrática.
Para entender esse funcionamento, a
história nos serve como o principal instrumento de observação. Há dois
anos atrás, o que antecedeu a aprovação da Medida Provisória 657, que
segundo a própria lei faz com que o cargo de Diretor-Geral, nomeado pelo
Presidente da República, seja privativo de delegado de Polícia Federal
integrante da classe especial, foi um vazamento seletivo da delação
premiada de Alberto Youssef, no momento específico em que ele fala sobre
o envolvimento de políticos do Partido dos Trabalhadores em esquemas de
corrupção. O objetivo desse vazamento foi pressionar a base governista a
aprovar a medida provisória supracitada, garantindo mais um benefício
pra a classe dos delegados. Visto isso, o papel deles como operadores de
uma ruptura do ponto de vista da legalidade democrática tem sido
essencial para a manutenção da crise política no Brasil, e os únicos que
têm se beneficiado com isso são os próprios delegados.
Em parte se aproveitando do prestígio
social que a Polícia Federal tem, em parte se aproveitando da omissão de
outras instituições para o crescimento da classe (vide Polícia
Rodoviária Federal e Ministério Público), através de lobby e chantagem
no congresso nacional os delegados estão sequestrando uma série de
atribuições de outras instituições e fazendo com que a Polícia Federal
se aproprie dessas atribuições. Um exemplo que pode ser dado é a Lei
13.124/2015, que faz com que a investigação de determinados crimes passe
do Ministério Público do Estado para a Polícia Federal. Um outro
exemplo que também pode ser dado é a recente reclamação dos delegados
acerca das atribuições da Polícia Rodoviária Federal. Segundo o portal
do Supremo Tribunal Federal, na visão dos delegados da Polícia Federal:
“ao permitir que policiais rodoviários federais executem atos privativos
da polícia judiciária – como interceptações telefônicas, cautelares de
prisão, busca e apreensão, quebra de sigilos e perícias – o decreto
invadiu reservada à Polícia Federal pela constituição”. Essa
centralização do poder a qual muitos assistem apáticos é o tipo de
afronta mais grave que se pode pensar ao Estado Democrático de Direito
porque ela significa também uma centralização do poder político, e nesse
sentido ela inverte a relação fazendo com que não mais o poder político
seja submetido ao povo, mas sim o contrário. E é assim que começaremos a
chocar o ovo da serpente.
De longe o projeto mais ameaçador do
ponto de vista da democracia no Brasil é a Proposta de Emenda
Constitucional 412, chamada equivocadamente de PEC da Autonomia. Segundo
o texto da própria PEC, ela “organizará a polícia federal e prescreverá
normas para a sua autonomia funcional e administrativa e a iniciativa
de elaborar sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos
na lei de diretrizes orçamentárias”. Não existe em nenhum regime
democrático esse tipo de autonomia pra uma instituição policial,
especialmente porque essa autonomia significa na verdade um descontrole
total sobre o poder exercido por uma instituição correspondente ao braço
armado do Estado e que opera, em suas instâncias, informações
estratégicas para a manutenção do poder político no país. Essa autonomia
é sinônima de uma forte violação da democracia brasileira porque ela
não é uma autonomia da Polícia Federal, ela significa uma autonomia dos
delegados da Polícia Federal em relação aos outros poderes. Essa
autonomia, na prática, significa uma licença para o braço armado do
Estado agir da forma como bem entender e desconsidera completamente os
interesses escusos da classe que comanda essa instituição. Classe essa
que não aparenta ter remorsos ao lutar pela manutenção do modelo atual
de segurança para garantir seus benefícios, que inclusive vai além
disso: busca operar uma centralização do poder e consequentemente, uma
ruptura no regime democrático.
Visto isso, é impossível observar toda a
crise política pela qual passa o Brasil sem levar em conta quais
interesses estão sendo colocados em jogo em cada movimento. E isso não
se trata de governo e oposição, porque o poder dos delegados vai muito
além disso. Trata-se de uma perspectiva que pensa a polícia, o trabalho
policial e o poder político em uma relação muito mais intrínseca, e que
enxerga na ascensão dos delegados de polícia um perigo do ponto de vista
da segurança pública, mas acima de tudo, do ponto de vista da
democracia brasileira.
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